quarta-feira, maio 30, 2007

O outro lado

De aparência triste. Ele era muito pobre. Um tanto frágil, um tanto tímido. Outro tanto tão que nem ele sabia o que era. Ah, mas era. Tudo que ele tinha era uma caixa preta, que ele mesmo batalhara para adquirir, e todos se perguntavam o que havia ali. Todos os dias, à noite, quando a névoa baixava, saía com a tal caixa. Possuía uma alça, ao menos. Os vizinhos burburinhavam as mais diversas histórias sobre o que carregava, mas era um rapaz um tanto reservado. Quando questionado sobre o conteúdo da caixa, respondia com um breve e sonoro "vida". Isso quando conseguiam pará-lo na saída do edifício de dois andares, onde morava, num quarto alugado, nos fundos, lá no fundo, bem no fundo. Saía com a mesma cara de louco, cabelos desgrenhados, barba por fazer, mas sempre com um terno preto. O mesmo terno preto, sempre.
Logo virava à esquerda, entrava em um beco, e sumia na neblina. Só se podia ver o cintilar de uma fivela da parte de trás do suspensório, que sumia como um coração parando de bater. E o beco morria. O breu incessante ardia os olhos do moço, mas mantinha o passo firme, a postura impecável, e continuava a desbravar o infinito. Vez ou outra tropeçava em uma caixa de papelão, ou em alguém dormindo. Ele ia até os fundos, lá no fundo, bem no fundo. Ah! Também algumas vezes um cachorro o acompanhava. E era possível ver sua mão jogando algo para ele.
No mesmo prédio, no apartamento da frente, morava um menino, com sua família. A janela de seu quarto, à direita de quem vê a construção, dava para o beco. A juventude chegou, e ele passou a concorrer com o frio noites a fio no parapeito, sem se cansar de ver o homem, sem descansar de inverno cobre. Inverno cobre era como ele chamava as noites que via e refletia sentado, devido ao letreiro que limitava o ouro lado do beco, piscando luzes alaranjadas, delicadamente gastas. Sempre avistava o último palpitar das presilhas dos suspensórios de um contorno humano. O homem não parava de andar, e o silêncio do beco ficava mais alto à medida em que se afastava.
O moço do terno, ou da caixa, ouvia apenas seus próprios passos, pois o eco ensurdecia qualquer outro vestígio de som. Após cinco minutos caminhando, entrou por uma portinhola de madeira.
Era como uma boate, onde andou até um tablado também de madeira, cumprimentou dois outros homens de terno, que pareciam ser seus amigos, e sentou-se em uma cadeira ainda de madeira.
Abriu a caixa, e tirou uma guitarra vermelha. "Minha vida" - beijou. Ele era um homem rico, e ela, sua vida. E passava horas a fio a degustar as notas que timbravam aquele ambiente. Vivia para aquilo e era feliz. De aparência triste.

Um comentário:

Priscila Lopes disse...

Nossa, fiquei com os olhos cheios d'água. Muito bom. Meus parabéns, sinceramente, adorei demais.