quinta-feira, agosto 30, 2007

Caito, Cíntia, é Cecília.

Eu tenho um corpo marcado por linhas e veias.

Miro as linhas de minhas mãos, sei que estive no ventre de minha mãe. Portanto eu realmente nasci.

Eu aperto as minhas veias e minha pele fica quase branca, sei que por mim escorre um sangue. Portanto eu realmente estou existindo.

Não sei o que fazer de meu corpo. Disseram-me que tenho uma alma e que é por isso que continuo vivendo.

Queria ser só alma, mas sou a cicatriz até meu último instante. Eu sou Cecília.

Sou doente de vida e de morte. Quebro espelhos, bastam meus olhos.

Qualificaram-me, acham que sei existir vivendo. Não sei lidar com meu corpo almado.

Designaram-me Cecília.

Acabei de acordar, será que estou morrendo? Não sei onde pousar minha mais fina pele, meus lábios seguram minha alma. É tanta finura.

Bianca

Seu nome fala por si só
Sua história não tem dó
Tempos frios, violentos
Tempos mancos, lentos, francos
Quando o vento não levou o peso desse documento
Que tatuou em sua pele branca
Uma sina e uma idéia de Bianca

Seu mundo é seu
Seu hino é meu
E ela é fria, violenta
E ela é franca, e venta, é tanta
Senta e se levanta teses tantas
Que não conta a ninguém
Nem sequer quando é amada
Só encanta a tal menina
Essa Bianca

Ninguém tem o cacife pra entender
Ou pra furar esse recife de corais
São tão bonitos seus florais
Que tanto fito

Essa esfinge guarda uma cidade
Inteira em sua mocidade
Ela nem sabe seu tamanho
Ela nem cabe em sua manha

E amanhã o tal clichê: "Decifra-me ou te devoro" sairá pelos seus poros
E entrarei nas profundezas brancas
Onde ouve-se um sussurro
Que canta meu nome
Bianca

segunda-feira, agosto 27, 2007

Praga - Parte 4 de 4

Tico não conseguia parar de rir. Sua barriga e seu rosto já começavam a doer um pouco, pensava que os olhos saltariam das órbitas. Em sua mente estava até um pouco desesperado com tudo isso, mas achava graça em cada comentário que seu amigo fazia, em cada pequeno detalhe que observava pelo caminho, em cada som que ecoava mil vezes em seus ouvidos.

- Nossa, cara, você tinha razão, esse bagulho é da hora mesmo! Mas não sei se vou conseguir conversar direito não... já não to conseguindo lembrar do que a gente tava falando... olha lá o traveco, cara! De biquíni laranja, que engraçado mano! Olha que peitão, parece que vai explodir mano!
- Olha aí, já ta lesadão! Deu sorte hein, mano! – Nando disse, caindo em gargalhadas - Eu só chapei da quarta vez. Já você, olha só: já ta brisando no travecão!
- Pára mano, esse negócio é mó viajem... mó traveco comédia mano!
- Quer pegar nos peitos dele? Se quiser a gente faz a volta e...
- Que pegar nos peitos é o caralho! Qual que é, truta, ta me tirando...
- Não para de falar no traveco...
- Essa porra que você me deu que me fritou as idéia. To até com dor de cabeça, mano, não vou conseguir parar de rir nunca...
- Relaxa velho, primeira vez é assim mesmo. Depois fica mais suave, uma luz mais leve... Aí, chegamos. Bem vindo ao bar do Figura. Umas menininha, rola uma sinuca, um som da hora, breja barata... Se pans esse é o pico que mais visitei desde que você apagou.

Os dois adentraram o boteco satisfeitos. Era um ambiente simples e bastante cheio, aonde grupos de universitários conversavam alegres, levantando seus copos e brindando, barulhentos, embalados por sambas de gafieira e bossas bonitas da época de seus pais. Os dois estavam tão alegres pela presença um do outro que nem lembraram que Tico detestava samba. Fernando estava bem contente, sentia muita falta dos tempos em que os três eram inseparáveis. Velhos tempos, como as coisas mudam rápido. Como as coisas se perdem rápido. Nunca mais se reuniriam, sabia disso. Mas agora, pelo menos, tinha Tico de volta. Pelo menos Tico.

- Aí Figura, manda uma gelada e dois copinho pra cá, tem a moral?

Conversaram banalidades por um pequeno tempo, Tico sempre rindo muito de tudo. Quis saber se seu time estava bem no campeonato e ficou feliz ao ouvir que enquanto ele estava desacordado a equipe se sagrou campeã continental, embora tenha lamentado não assistir o triunfo. Perguntou quem era o presidente novo, quem ganhou a copa do mundo e se a dona Jucélia, figura centenária que dirigia com mão de ferro o pequeno colégio em que estudaram, já tinha batido as botas. Ficou espantado ao descobrir que até as torres gêmeas não existiam mais, mas a velha coroca continuava na ativa, humilhando os alunos enquanto entregava, com discrição hipócrita, os envelopes brancos que gritavam em silêncio: “Inadimplente! Inadimplente!”. Ficou espantado com muitas coisas.

- Manda mais uma aí, camarada! Mas caralho, Fê, até o George Harrison morreu! Que porra, todo mundo morre nessa merda! Quem mais morreu? Fala aí.
- Bem, cara... Pra te falar a verdade... Bem...
- Ih, qual que é Nando? Mudou a cara de repente. Falei coisa errada?
- Não cara, relaxa, já ia te contar mesmo... Bem... É que... Morreram meus pais...
- Como assim moleque, você ta me zoando? Fala sério, mano, não brinca com essas coisas!
- É verdade, porra, cê acha que eu vou brincar com isso? E o pior que meu pai tava cheio de dívida, rolou o maior aperto lá em casa, uma merda. Eu e meu irmão só não morremos de fome por causa da minha tia Cleide. Sei lá truta, já faz até um tempinho que evito tocar nesse assunto, mas tinha que te contar.
- Que merda! Você ta bem, cara? Como isso aconteceu?
- O coroa cravou o carro num poste truta, aceleradão, tava encharcado! Voltando do aniversário do Braga, um camarada dele. Meu pai morreu na hora. Lembra do Soares, o sócio dele? Tava no banco de trás. Até conseguiu chegar no hospital, mas não teve jeito, não resistiu também. Foi feio mano, arregaçou o Fiesta. Por causa dessas fitas que só to entrando agora na faculdade...
- E sua mãe?
- Ficou que nem você. Dez meses. Depois morreu também.
- Mas que porra, maluco, que merda é essa? Que mais de desgraça você vai me contar? Foi pra isso que você me trouxe aqui?
- Ih, Tico, qual é? To falando dos meus pais, porra, não dos seus! Aí Figura, desce mais uma !
_ Tem razão, Fê, foi mal aí... Mas velho, depois que acordei, só me contaram desgraça... Parece que não deu nada certo pra ninguém, sei lá Eu sou a zica, mano, ou o gatilho, vai saber... Preferia ter continuado em coma.
- Cala essa boca, moleque! Como assim? Você sempre foi o mais forte de nós, vai falhar agora? Já falei, foram os meus pais!
- Forte, velho? Como forte? Eu? Forte é você, truta, olha aí. Eu era uma mentira. A maior mentira.
- Não fala isso não, velhote...Você sempre foi o primeiro em tudo! Em tudo, Tico! O melhor, o mais bonito, o mais forte, o mais desencanado. Você sabe que eu e o Fred nos espelhávamos em você. Não vai peidar na farofa mano!
- Mentira, caralho, era a maior mentira mano... Que viajem... Se espelhar em mim, o que você ta falando? Que merda, cara... Se espelhar em mim... E o Fred, falando nisso, você falou que ia me contar aqui. Não vai me dizer que ele também...
- ...
- E o Fred, Nando?
- ...
- E o Fred, Nando, porra, o Fred! Não vai me dizer que...
- Calma, Tico, calma... O Fred... Bem...
- Fala, seu filho da puta, desembucha logo essa merda!
- O Fred também morreu.
- Vai tomar no seu cú, Nando, você ta me tirando!
- Calma, Tico, caralho, calma!. Não faz muito tempo. foi por isso que liguei na sua casa, queria contar pros seus pais e pra sua irmã, visitamos muito você no começo, nos apegamos a sua família de uma maneira estranha. Enfim, o Fred quis pegar o atalho... o caminho mais rápido, truta! Aquele babaca, quanta saliva eu não gastei com ele e o cara nem pensou um pouquinho que seja! Tava na cara que aquelas idéias dele iam dar merda, mas você lembra como ele era teimoso...
- Que idéias, Fê, fala logo.
- Quis pagar de Zé Fitinha, cansou de ser otário... Mas rodou logo na terceira fita. Foi pruma delega superlotada no Embu, depois que pegaram ele tocando a fuga de dois cara que tavam fazendo um Bradesco no centrinho. Na primeira noite teve rebelião. Bem...
- Mataram ele.
- É. Degolado.
- Fred, caralho, você sempre foi muito burro, filho da puta! Você nem precisava disso, que buceta! Que buceta!
-...
- E a Carlinha?
- É minha mulher. Estamos juntos desde aquela época.
- Pô, uma mísera notícia boa! Ela ainda tem contato com a Débora?
- A Dé morreu também.
- A Dé o que? Fecha a conta dessa merda, eu quero ir pra casa. Você ta de palhaçada comigo, isso não é brincadeira que se faça com alguém que acabou de sair do coma.
- Não é brincadeira, Tico, é verdade. Desculpa cara, mas tinha que fazer isso. É a última morte que tenho pra te contar. Foi pouco tempo depois de você apagar. Você lembra, cara, a coitadinha tinha uma vida tão complicada, os pais dela eram foda... Ela ficou desesperada, achou que você ia morrer por causa dela.... Ela... Porra... Ela...
- Vai, Nando, acaba logo com essa merda que eu não agüento mais.
- Porra mano, é que isso é foda. O Rafael... Sabe?
- Como assim “sabe”? O cara me botou no coma, caralho! Ta me tirando? Fala logo o que esse filho da puta fez!
- Ele foi atrás dela, queria ela de volta, não tava conformado com a derrota. Bem, um dia ele foi na casa dela... Os pais dela não tavam lá, ela colocou ele na garagem pra conversar, explicar que não... Ela odiava ele, coitada...
- O que ele fez, Nando, Fala! Solta logo, porra!
- Ele... Mano... Ele estuprou ela, velho. Na mesma noite ela escreveu duas cartas, uma pra mim e pra Carlinha e outra pra entregar pra você se um dia você acordasse. Encheu a banheira do banheiro do quarto, entrou, cortou os pulsos e ficou lá, ouvindo Titãs, por que você adorava. Escreveu que se matou para pagar a dívida que tinha com você e com ela mesma, por ter namorado um cara como o Rafael.
- Nossa cara, me da um cigarro, pelo amor de deus. Eu já nem to mais louco daquela porcaria, nem tinha percebido. Que porra, mano, pra que tudo isso? Pra que? Não to entendendo mais nada, acho que vou acordar suado e perceber que ainda não te encontrei... Ou sei lá, será que eu ainda to no coma?
- É foda, truta, é foda, mas é tudo verdade. Mas quer saber de uma coisa: eu to um pouco feliz.
- Feliz com o que, animal?
- Pelo menos você voltou.
- Cala a boca, Nando, vai se foder! Voltar pra essa merda toda, que grande recepção de bosta que você me fez!
- Vai se foder você, Tico, uma hora você ia ter que descobrir tudo, melhor ser de uma vez, qualé que é, to te falando na maior camaradagem...
- Droga, velho, que droga... quer saber, chama o tal do Figura aí e pede mais uma breja... ou melhor, pede uma pinga. Que porra, brother, será que foi porque a gente cabulou tanta missa? Que porra de castigo bizarro, truta, que droga!
-É... Que merda, né velho? Aí Figura, traz mais uma breja e uma dose da branca aí pra nós, tem a manha? Pô, cê ta falando esse negócio de missa... Sabe que às vezes eu penso uma coisa estranha... Você vai me achar meio bizarro, mas...
- Lança aí, Nando, bate logo.
- Não vai ficar me zoando hein...
- Vai, moleque, fala logo...
- Lembra de uma vez que a gente cabulou a missa e você foi fumar um cigarro bem no pátio?
- Lembro, cara, lembro sim. O que tem?
- Lembra que o Juvêncio nos pegou e ficou falando um monte de merda?
- Lembro.
- Então, ta aí.... Isso tudo aí foi praga, truta, mandinga das fortes. Urucubaca, zica feia! Aquele filho da puta rogou a maior praga, mano! Praga do Juvêncio. Tenho certeza, truta, praga! Praga forte! Praga daquele escroto filho da puta cornudo do Juvêncio!

domingo, agosto 26, 2007

De onde vem o tiro

Dava pra sentir sua própria pulsação em torno da superfície circular da boca do revólver apertado contra sua nuca. No começo, o cano estava frio. Mas, quando, logo depois de tirar a arma de sua cabeça e disparar contra os policiais, o assaltante voltou a ameaçá-lo, sua pele quase queimou.
O momento era tenso. Na posição em que estava, ajoelhado e segurado pelos cabelos, não conseguia ver muita coisa, mas podia perceber a respiração do outro tão tensa como a sua. Além disso, não havia muita firmeza, apesar da brutalidade, na maneira como segurava a pistola enferrujada (o cheiro de ferro se misturava ao da pólvora). A agitação maior tinha sido no momento do tiroteio. Agora, predominava o silêncio e a estabilidade. Ninguém se mexia.
Mil coisas passavam pela sua cabeça. Tentar dialogar, tomar a arma, fugir. A falta de coragem evidenciava sua sanidade em não fazer nada disso. O homem atrás de si estava desesperado e não pensaria duas vezes antes de atirar.
Haviam se passado quatro dias desde que sua SUV fora interceptada por dois desconhecidos, no bairro dos Jardins, área nobre da capital de São Paulo. Ele voltava do escritório mais cedo naquela quarta-feira e já estava pensando em passar o resto da tarde na piscina do apartamento novo quando viu um revólver pela primeira vez. A mulher tinha levado as crianças para verem a avó em Sorocaba, era a última semana de férias escolares. Passaram-se quase dois dias sem que dessem por sua falta.
No começo, parecia se tratar de um seqüestro relâmpago. Mas o veículo chamou a atenção de policiais despreparados, se iniciou uma perseguição desajeitada e ele foi levado para o coração de uma periferia que não conhecia. Os bandidos, transtornados, não sabiam bem como lidar com a situação.
Jogaram-no, já um tanto machucado, em um quarto pequeno e sujo de um barraco mal-cheiroso. Em um canto, uma cama sem estrado; algumas baratas mortas do outro lado. Pela boneca velha jogada no chão, parecia que o cômodo fora um dia de uma menina. Ficara ali até o momento. A única refeição que tivera foram dois pãezinhos dormidos na manhã anterior, quando um dos homens percebeu que estava ficando muito fraco e teve medo de piorar a própria situação. Pela TV, os dois descobriram que se tratava de um executivo conhecido e que a polícia vasculhava o perímetro do bairro. Suja, assustada e exausta, a vítima ouvia as discussões calorosas entre os dois. Nunca ficava só e sempre havia uma arma apontada para seu rosto.
Sem saída, os criminosos decidiram tirá-lo dali; pensariam no que fazer com ele - ou com seu corpo - quando estivem mais seguros. Um deles se adiantou, o outro se dirigiu à sala com o seqüestrado em instantes. Ouviram-se então tiros e gritos. Um deles, baleado, ficou no chão. Amedrontado, o outro agarrou o refém pelos cabelos e ali estavam.
Se por um lado sentia correr a adrenalina nas veias cheia de esperança de por um fim ao pesadelo, por outro não conseguia impedir o bombardeio de imagens de vítimas de fogo cruzado que vira tantas vezes no noticiário.
Foi quando ouviu o disparo fatal.

Dia-a-dia

Cada dia adia um dia
Que veio antes
Cada dia adio um dia
E todo dia é dia "d"

O dia que é adia
O dia que foi, nostalgia!
O dia que vem seria
E depois fica na memória

É só despir a fantasia de agonia
Despedir-me da saudade, do futuro
E viver cada dia

Adiós!

domingo, agosto 19, 2007

D. Errante - 1

D. Errante sempre carregou, além do escudo e da espada, uma grande frustração: não poder lutar. Os motivos não eram ausência de preparo, coragem ou capacidade. Longe disso. Faltava-lhe o adversário.

A solidão de um treinamento sem propósitos lhe infligia profundos ferimentos. Para quê tanto afinco? Ante a inexistência de adversários, qualquer perspectiva de glória se esfacela. A fama que advém do nome, que não exige uma única gota de suor, é a derrota alheia imposta pelo avesso - e isso não dá título de nobreza, não concede insígnias.

Farto de estraçalhar as mãos em bonecos de madeira impassíveis e imunes a seus golpes, juntou umas parcas moedas, empunhou o elmo imaculado e seguiu caminho por vilarejos desconhecidos. A cada parada, amigos e porres. Mas nenhum desafio. Temiam-no. Jamais havia quem ousasse iniciar uma batalha. A covardia alheia vaticinava um fim que eliminava qualquer possibilidade de começo.

Nem a espada deixava a bainha. Nem o furor de uma batalha chegava a tomar-lhe o espírito. Era como se ele, o cavaleiro, trouxesse a iminente e inevitável morte incrustada em sua espada de prata. O que, naturalmente, era uma inverdade.

Continua... (?)

I'm through with love

I have given you my true love,
But you love a new love.
What am I supposed to do now
With you now, you're through?
You'll be on your merry way
And there's only this to say:

I'm through with love
I'll never fall again.
Said adieu to love
Don't ever call again.
For I must have you or no one
And so I'm through with love.

I've locked my heart
I'll keep my feelings there.
I have stocked my heartwith icy, frigid air.
And I mean to care for no one
Because I'm through with love.

Why did you lead meto think you could care?
You didn't need me
for you had your share
of slaves around youto hound you and swear
with deep emotion and devotion to you.

Goodbye to spring and all it meant to me
It can never bring the thing that used to be.
For I must have you or no one
And so I'm through with love.

Why did you lead me
to think you could care?
You didn't need me for you had your share
of slaves around you to hound you and swear
with deep emotion and devotion to you.

Goodbye to spring and all it meant to me
It can never bring the thing that used to be.
For I must have you or no one
And so I'm through with love.

(Malneck, Kahn & Livingstone, 1931)

quarta-feira, agosto 15, 2007

Changement

Mudanças acontecem. Algumas não pedem licença - mudam.
A disposição dos móveis do quarto, a tia da limpeza, o sentido da rua, o template do blog.
É engraçado. Dá uma saudade do que se foi, uma preocupação com o destino do que era antes e um medo em relação ao novo. Será tão bom quanto o anterior (ainda que nem fosse assim tão legal)?
Por outro lado, tem mudanças que demoram que só... A gente anseia, planeja, anuncia e não chegam. O fim da faculdade, a carteira de motorista, o casamento.
É tudo uma questão de momento de vida: na verdade, no minuto do turning point, o frio na barriga é o mesmo. Mas, nesse caso, é melhor. Tipo pular de um trampolim alto: a hesitação só melhora a passagem.

terça-feira, agosto 14, 2007

[16 - vol.2] Pq não falar de amor? - parte 1 [Henrique]

Não era a primeira vez que via Sueli, mas de repente ela se tornou perfeita, o temor era: ela sempre foi perfeita, e só agora percebi? Onde estava com a cabeça esse tempo todo? Ansiedade por todo esse desperdício de tempo, como passar mais tempo ao seu lado? O que ela vai pensar? O que os outros vão pensar?

Não era dessa perfeição deusificada, era a mais bela, com certeza, o sorriso mais contagiante, não havia dúvidas, acho que era seu jeito de falar: suave com pausas bem claras, demonstrando atenção no que fala e em quem ouve.

Frio na barriga em todas as ocasiões em que havia a possibilidade de encontrá-la. Acalmando só com a chegada daquele terno sorriso. Não usava maquiagem com frequência, desconfio que ainda não tenha aprendido essas técnicas, o que trazia mais autenticidade a sua beleza.

Até seus passos são únicos, há muitas coisas que fazem as pessoas serem únicas, impressão digital com certeza é a menor. O caminhar, o ajeitar o cabelo com as mãos, mexer a ponta do nariz, a letra, o perfume.

Sentir-se culpado por cada momento sem ela, em companhia ou pensamento. Até onde isso é loucura? E tão confortante? Por quê é difícil fazer essas perguntas, e por quê os pais não dizem nada sobre algo tão grande que parece não caber em mim?

As músicas falam de amor, os filmes mostram os mesmos casais em corpos diferentes. Sueli, um abraço, e um beijo. Não é: -Por quê falar de amor?. E sim: - Como falar de amor???

domingo, agosto 12, 2007

Soam sinos

Mais sou
Menos me torno
Mas sou.
Soam sinos
Pétalas e asas...
Soam sinos
Estilhaçam-se vidros
Ensuderce a asa
Sangra a pétala.
A asa da borboleta,
O cone invertido
A pétala de rosa,
O badalo.
Soam mártires.
O órgão fundamental do vôo
Aclamado pelo sopro
A peça da colora da flor
Robusta mas febril
Soam sinos
O badalo do cone...
Verte-se o líquido salgado.
A melodia estridente
A pétala efêmera
O sopro nostálgico
Torno-me
Mas não sou
Do badalo
Escorre meu líquido
É água sagrada estilhaçada
Porém profana
Mais sou
Menos me torno
Mas sou
O último badalo encharcado
Aclamado pelo martírio

quinta-feira, agosto 09, 2007

Sentimento Travestido


Eu trago comigo esta melancolia úmida transbordante dos lábios trêmulos. Já me chamaram de frívola. Eu não me lembro. A cada passo, mais distante me encontro, em qualquer caminho ermo, estou perdida. Sei que queres colaborar com alguma coisa em minha vida, meus "ais" noturnos que já não escutas por não morar contigo, mas basta! Somos agora duas almas desestimuladas demais para levitarem juntas – aterrissemos. Você me deixou com o peso de meio mundo ao me fazer enxergar que nunca viste em mim um futuro promissor. E desde adolescente, acostumei-me a não fazer promessas – a não cumpri-las. O que temos de mais parecido está tão-somente nos cílios compridos. Fazer exigências de que eu me torne alguém que não possuis em tua essência é, no mínimo, presunção. Sejamos realistas: o que tenho de mais feio são os joelhos e os cotovelos que herdei da mãe que você não quis me apresentar. Seremos eternos em uma outra vida. Hoje não. Estou ausente de mim mesma, rompendo o barulho com um silêncio impenetrável – nem ao menos teu olhar incisivo seria capaz de transpassar as paredes do destino que eu mudei. Gostou da cor? Está satisfeito agora que tudo é cinza como as nuvens nubladas sobre a garagem do teu carro? Eu não moro mais contigo, e não é por causa disso, já que sempre tomei banho de chuva, caminhando sem sombrinha para a escola imunda. Como odiava ter de estudar em escola pública! Como era repugnante ver aquelas criancinhas bestas, que se beliscam o tempo todo, e babam, e deixam o nariz escorrer aos olhos do mundo; crianças que comem crianças. Serei do morno túnel cuja luz está no meio – e eu vou até o fim, porque me ensinaste a amar o contrário, agora não assumes que o inverso é mais modesto. Jamais fui rebelde nos gestos, mas trinta anos depois, despejo em você a agonia de viver encerrada neste corpo que me alicia. Você me fez a sua mulherzinha. Por quanto tempo eu suportaria respirar o teu perfume? Subornei o próprio instinto, você sabe, sou sincero mas desonesto. E agora, no masculino, me sinto descabido e doce, no descompasso do tempo que a tua lembrança me trouxe. Espíritos, quantos e tantos, espíritos me seduzindo noite adentro em línguas de espanto - um horror! - noites mal sonhadas, sofrendo a ponto de me sentir a alma feminina na vazão do grito. Era apenas inspiração noturna. Mas eu lavei todos os pratos e roupas, suas cuecas e louças, estendendo os planos no varal a quinhentos metros do jardim. Estava tudo fora do lugar quando eu nasci. E eu descobri que no fundo do poço há outro mais fundo. E que se você conhecer meu namorado, meu marido, meu filho, não sei, se você conhecer alguém que realmente valha a pena em meu cotidiano insosso, ou se você se recusar, como fez até ontem à noite – e hoje eu lhe escrevo sem ter dormido uma linha sequer – na verdade não faz a menor diferença nas horas que passam dentro dos anos que levam a minha vida. Esta, que será levada de todo a qualquer minuto do dia, por descuido meu, admito, meu descuido deitado em tuas amiúdes manias. Mas se nunca quiseste, lá atrás, não vou agora obrigá-lo a falar em sexo só porque o meu foi condenado a sacrificar-se em nome de um sentimento aflorado naquela cozinha daquela casa daquele bairro onde meus pés nunca mais pisarão, e vamos esquecer aqueles quatorze anos. Recordar é reviver; e eu estou morto. Porque sou a mulher que você idealizou, fabricada em seu quintal, nas inflamadas tardes de sol, em que eu te servia a caipirinha com bastante gelo e pouco limão: eu fui a tua putinha. E, carente de sentidos humanos, me despi de sanidade. É possível que você chore agora que a minha ausência lhe ensinou o verbo apático – e a minha reaparição lhe conta a mais triste história. E eu vou sentir pena, tanta pena, de nós dois. Você gostou tanto daquele bordado que preferiu acreditar que fora feito pela vovó, mas eu escrevi: "te amo, papai -1989". No berço de um sentimento transtornado e poluído que, hoje sei, Deus não ousaria considerar amor. Abismado de me ouvir falar em Deus? Eu, que me fiz a aberração da bíblia na modernidade? Freqüentei a igreja, pai, por muitos anos até encontrar o que eu queria – fora dali. Dei-me o direito de sonhar como toda mulher, e realizar: me casei há dois anos, você não quis conhecê-lo por receio de não me reconhecer. Independentemente de quem eu sou - não sei, você algum dia soube? – eu me resumo nesta só frase: uma pessoa feliz.

Mas hoje trago comigo esta melancolia úmida, de uma doença que não cura, porém é o teu orgulho seco que me mata.

terça-feira, agosto 07, 2007

Os dias e as dores

Terça-feira, 7 de agosto de 2007, sete e meia da manhã. São Paulo.
Lúcia olha atônita para os óculos da mãe, deitados inertes sobre a mesa. Estão na mesma posição desajeitada há três semanas, desde que foram largados pela senhora que tinha pressa para sair e despachar um pacote para sua cliente.
Do outro lado da cidade, Fernando abre os jornais - eles não falam mais tanto no assunto. A sociedade retomou o ritmo cotidiano e ele deveria voltar ao seu em breve. A CLT garante dois dias de licença por luto; sua empresa, em que trabalha há 30 anos, lhe deu um mês. Ele se serve de café velho, anda pela sala. "Como se mede a dor de uma pessoa em dias?", pensa.
No andar de baixo, Carla vira o anel dourado de um lado para o outro no dedo. No silêncio da manhã, olha para o relógio, como se conversassem. O casamento no civil seria hoje, em duas horas. Ela jamais poderia imaginar que esse dia nunca chegaria.
Sete e trinta e cinco. Bruno olha a rua pela janela do seu quarto - agora só seu. Enquanto seu irmão arruma a cozinha e fala ao telefone com a seguradora sobre os reembolsos pelo funeral, ele mira a fachada do restaurante em frente. A levara lá há um mês, para comemorar o novo emprego de comissária de bordo.
O mesmo restaurante em que Flávia comemorou a notícia da sua primeira gravidez, há sete anos. Nesta manhã, ela chora baixo ao olhar para os brinquedos dos filhos. Em algumas horas, sua mãe chega para ajudar a arrumar o quarto dos dois (intacto desde o acidente), talvez encaixotar algumas coisas, doar algumas roupas. O rádio-despertador começa a tocar Norah Jones.
Michel desliga o som do carro - não gosta dessa música. Estaciona, sobe as escadas e pára durante alguns segundos em frente à sala que fora da colega. O romance dos dois era recente, quiçá fosse passageiro. Não importa - foi intenso o suficiente para sentir-se agora um viúvo bastardo. Doía não poder padecer sua falta em público, como fazia o marido dela. Ele abafa o nó na garganta e se apressa para ligar para o cliente.
Paulo ouve o telefone tocar, mas não atende. Acaba de entrar em um acesso inesperado de choro em seu escritório. Seus funcionários, que nunca o viram esboçar o menor sinal de sentimentalidade, tentam não reagir. A secretária lhe traz um copo d'água e encosta a porta da sala, para lhe dar privacidade. Tinha conseguido enfrentar com copiosa elegância e sobriedade a perda do pai até então. Sucumbiu agora, diante daquela planilha, ao lembrar de quando ele lhe ensinou, ainda menino, como se faz uma tabela de contabilidade. Desesperado, liga para a clínica da filha. Eles conversam - ela não tem pacientes até às onze.
Cida será a primeira; começa a terapia hoje. Ela não precisa acordar antes das nove, mas não descansa em seu sono. O avião que passou em frente ao táxi em que estava a persegue. Ouve as vozes dos passageiros gritando. O mesmo sonho, os mesmos calafrios. Levanta de súbito, suada, só.
No elevador do seu prédio, Ricardo fita o menu de andares e pensa "Fui um bom filho pros meus pais. Um bom irmão, um bom profissional, um bom aluno. Mas nunca tive a oportunidade de ser um bom marido pra ela", o coração pequeno batendo tímido.
Cumprimenta Cláudia no estacionamento e a desperta do devaneio. Terá de voar pelo trabalho hoje. Apavorada, não consegue nem bem ligar o carro. Não tem coragem de pedir para mandarem outra pessoa. Olha seu reflexo no retrovisor e respira. A vida continua. Ela tem que seguir. Todos eles têm.

quarta-feira, agosto 01, 2007

Praga - Parte 3 de 4

No último dia de aula, quando tocou o sinal da saída, aquele clima de briga por vir inundava os corredores do colégio. Nando e Fred perceberam o burburinho e correram para ver o que estava acontecendo. Tico tinha cabulado a última aula, alegando aos amigos que precisava encontrar a mina dos seus sonhos. Quando os dois amigos chegaram à porta principal da escola, viram um grupo de skatistas fechados em roda, gritando, xingando e espancando com seus skates algum pobre coitado. Nando avistou Carlinha ali perto, chorando.

- Qual é Carlinha? Quem é que ta dentro dessa roda?
- É o Tico, Nando, o Tico!

Nando olhou para o chão a procura de uma pedra grande enquanto Fred correu para recrutar mais dois amigos. De posse de um pedregulho de respeito, Nando correu pra cima dos meninos da roda enquanto Fred descia com os reforços. Os agressores saíram em fuga com seus skates e escaparam se espalhando pelas inúmeras travessas da Avenida Elias Maas. Só um deles não obteve êxito na fuga: Rafael, que ficou caído no chão com a cabeça cortada, nocauteado pela pedra do Fernando. Ao lado dele estava Tico, a cara inchada, todo roxo, sangrando aos baldes, desacordado.


Quando a dona Sandra percebeu que seu filho querido estava mexendo as pálpebras seu coração quase saiu pela boca. Começou a gritar, completamente histérica, o que rapidamente trouxe o pai e irmã de Tico para o quarto. Os três se abraçaram, chorosos, suas faces denotando aquele sentimento de perdão e compreensão mútuas. Perdão por qualquer coisa, compreensão para qualquer coisa, aquela humildade consciente dos próprios erros que, via de regra, acomete os mocinhos nos happys ends da sessão de tarde. Aquela humildade que em geral passa logo, sem deixar nenhum marca, como se nunca houvesse existido.


Tico demorou ainda mais um mês antes de pensar em contatar seus amigos. Passara quase três anos e meio em coma, voltou em uma nova realidade. Seu pai tinha um emprego pior, sua irmã estava grávida e a mãe viciada em remédios. Gastaram fortunas para mantê-lo vivo como um vegetal, destruíram seus dias e humores limpando seus excrementos enquanto rezavam, choravam e discutiam. Tico acordou para constatar que estava tudo desmoronando. Tentava lembrar de coisas boas em busca de alívio, mas era em vão. Será que não foi sempre assim? Seria ele apenas o infeliz escolhido para ser o gatilho? Ou seria a culpa toda dele? Que bosta! Adormeceu jovem, acordou adulto. Não conseguia se adaptar. Pediu aos parentes que guardassem segredo sobre seu despertar. Queria um pouco de tempo. Apesar disso, tinha saudades dos amigos. Mas tinha medo. Seriam ainda seus amigos? Por que as coisas têm de mudar tão rápido? Esperava que pelo menos seus amigos não tivessem mudado. E a Débora, como estaria? Nisso era melhor nem pensar. Mais de três anos, de certo já estava arrumada com algum felizardo. De qualquer maneira, já estava chegando a hora de enfrentar a vida. A nova vida. Resolveu começar aos poucos. Às vezes ia a padaria, às vezes a locadora. Um dia o telefone tocou e ele pensou em atender. Teve medo. Sentiu diversas gotas de suor gelado lhe escorrerem pelo corpo. No quarto toque, resolveu arriscar:

- Alô?
- Ah... Alô... Tico?
- Err... Não... Quer dizer...
- Tico, é você cara! Você acha que eu ia esquecer sua voz? Você acordou, cara, acordou! Mano, não acredito. Segura as pontas que eu to indo pra sua goma agora!
- Peraí, Nando, peraí...
- Espera aí é o caralho!
- Calma, cara, não sei se to pronto ainda, é que...
- Você tem vinte e cinco minutos pra ficar pronto. Tchau.
- Caralho!

- E aí Tico, que saudade mano!
- Porra cara, eu também... Se bem que pra mim parece que faz pouco mais de um mês que não te vejo... Como você ta diferente cara! Perdeu aquela cara de moleque bobão!
- Valeu aí pela parte que me toca. Você também ta bem diferente. Olha só, quanta barba! Ninguém te passou uma gilete nesses três anos?
- Claro que sim, mas eles pararam depois que eu acordei.
- Então, vamos tomar uma, preciso conversar com você, acho que aqui não é o lugar.
- Vamos. Vamos para rua. Se você soubesse há quanto tempo eu não vou a lugar nenhum além da padaria e da locadora...
- Sério velho? Pensei que você tava em coma. Você deve ter assistido uma pancada de filmes...
- Vai se foder, Nando. Vamo logo antes que eu desista.

Entraram no Fiat Uno vermelho de Fernando e partiram. Caramba, as coisas mudaram mesmo. Até o Nando já estava dirigindo!
- Aonde vamos?
- A um boteco bacana perto de onde estou morando. Ali perto da USP.
- Caralho, você passou na USP cara?
- Ainda não. Vou prestar Letras, mano. To fazendo um cursinho lá perto, trampando o dia todo. Mó veneno.
- Ce ta trampando do que?
- Sou gerente de uma loja do McDonald´s. Que merda, fala aí!
- Caralho, truta, como as coisas mudaram... E o Fred, sabe dele?
- Assunto pro bar. Melhor. Faz um favor aí pra mim Tico: abre o cinzeiro e pega isso aí pra mim. Se quiser, pode ascender você mesmo.
-Como assim assunto pro bar? Você ta me assustando... Aí Nando, que porra é essa aqui? Isso é um beck mano? Que merda é essa? Você ta fumando essa porcaria! Mas você nem fumava cigarro! Você vai fumar essa bosta dirigindo? Eu acabei de sair do coma, porra! Você quer ir comigo pra mais um?
- Cala essa boca, Tico! Larga de ser desesperado. É só um baseado, nada mais. Eu sempre achei que você seria o primeiro de nós a fumar...
- Você sabe que eu nunca gostei dessas coisas.
- De pinga você gosta!
- É legal.
- Maconha também é legal, você vai ver. Mas se não quiser não fuma, sobra mais. Só me dá isso aí logo.
- É legalizado, idiota, é isso que eu to falando! E se a polícia pegar a gente?
- “E se a polícia pegar a gente?”. Vira essa boca pra lá, urubuzão. Ou ascende ou passa, já deu essa ladainha toda!
- Quer saber? Cadê o isqueiro? Já ta tudo uma viajem mesmo, vamos ver qual que é dessa porcaria.
- Aí mano, então vai logo que a gente já vai chegar no bar e eu tenho muita coisa pra te contar.
- E eu pra ouvir... Mas... peraí, Nando, por que você ligou lá em casa? Pra falar comigo que nâo foi...
- Já falei, porra: assunto pro bar.