quinta-feira, maio 24, 2007

Estou virando fumaça

É frio. É fome. Ascendo um cigarro. Acendo logo em seguida. Já farto daqueles outros dezenove que acendi durante o dia. Mas, na minha atual posição horizontal, a varanda é mais próxima que o fogão. O vento corta as bochechas, e quase não sinto as narinas, que devem estar com uma leve coriza, mas a fome me obriga a extinguir mais um maço diante dos olhos negros da noite, sardenta de estrelas, sedenta de fumaça. Não só do ardor da minha respiração forçada, e dos tragos incessantes. Ela vem também provocada pela brasa que chamusca como um vagalume do inferno, vermelho, pronto para ouriçar mais um agente dos nicóticos anônimos. Abaixo, ouço os berros da vizinha, um prazer que cessa seu frio. As luzes pela cidade já não se mantêm mais vivas. Todas elas já se deitaram.
Penso que este será um último cigarro. Fumo com vontade, quase com o mesmo prazer da vizinha, que insiste em gemer. Estou de meias, mas a tempertura do chão é muito mais influente. Tremo, mas tremo de prazer. É o último do maço.
Penso na vida, e penso também em seu fim, provavelmente desencadeado pelo objeto de meu desejo. O vagalume. Decido então que este será o último também da vida, termino, fumo ainda um pouco do filtro, arremesso com um peteleco e o vejo se arrebentando no chão, depois de treze andares de piruetas. Um espetáculo as fagulhas se desprendendo, como fogos de artifício.
Entro no quarto, tiro as luvas, o casaco, o gorro. Me deito, contente com minha última decisão, modéstia à parte, inteligente e saudável. Acordo, coloco os sapatos marrons, calça, camiseta, malha de inverno, casacão, boina preta, peço um Derby para a empregada, e vou passear com o cachorro. Agora tenho dois maços de Camel no bolso. Terminando esse texto, voltarei à varanda.

Um comentário:

José Henrique Lopes disse...

e é justamente essa inconstância que faz a roda girar. abraço!