quinta-feira, dezembro 29, 2005

Quem liga para uma pomba?
Quem liga para uma pomba doente?
Quem se importa com uma pomba cega e perneta?

Pombas são ratos com asa
Aves que fazem dos postes arvores
Cagam em nossos carros e em nossas cabeças
Reviram nossos lixos atrás de alimento
Entopem nossas calhas e apodrecem os forros de nossos lares
Hospedam em seu corpo a escória das formas de vida
Ocupam as ruas de nossa cidade limpa
Aglomerando-se em fios, torres, telhados e quintais
Trazendo consigo micoses e ornitoses
Salmonelas e histoplasmoses

Quem liga para uma pomba?
Quem liga para uma pomba doente?
Quem se importa com uma pomba cega e perneta?


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As madames se assustaram ao ver a menina entrar na sala de espera do veterinário com uma pomba nas mãos
Agarraram poodles e chow-chows com força e sofreguidão,
Maldizendo em sussurros histriônicos a pomba ameaçadora
“Uma pomba! Uma pomba! Quem é que socorre uma pomba de rua? Quem se importa com uma pomba cega e perneta?”

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A veterinária corou, ao ver a menina entrar em sua sala com uma pomba
cega e perneta,
fitou os olhos da pomba, cobertos por uma crosta negra e asquerosa;
fitou os olhos da menina, cobertos pelas mais limpas lágrimas;
Virou a pomba para um lado, para o outro, olhou por cima, por baixo,
cutucou as feridas...
O diagnóstico não podia ser outro: a pomba deveria ser sacrificada.
Mas como contar isso à menina?
Parou e pensou por alguns segundos
E nesse intervalo, mil pombos nasceram
E mil vezes morreu a menina, por medo da pomba morrer
E ao término dos segundos mais longos da história da humanidade,
a doutora sentou,
puxou seu bloco de receitas,
e começou a listar os remédios necessários para salvar a pomba.


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E todo dia a menina caia cedo da cama, ansiosa para ver algum progresso nos olhos da pomba
Ansiosa para ver os olhos da pomba
Ansiosa para ser vista pela pomba
E todo dia a menina limpava a gaiola da ave
Dava-lhe água, comida e remédio direto no bico
E monologava longamente para que a pomba não se sentisse sozinha

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Mas o acaso é algoz cruel, tal qual cossaco russo

Um dia os olhos da pomba se abriram e seu olhar cruzou direto com o da menina
Olharam-se por alguns segundos, esses sim os mais longos da história da humanidade
Olharam-se com uma expressão que denunciava um misto de carinho, respeito, espanto e medo, e os mais céticos duvidarão que ambas verteram lágrimas

Negras lágrimas

Olharam-se enquanto a pomba ainda suportava o peso das pálpebras
Foi um daqueles raros e belos momentos de eternidade fugaz

Olharam-se até que a pálpebra caiu.
A pomba sucumbiu.
E a menina, chorando,
sorriu.

quarta-feira, dezembro 21, 2005

Grandes questões indispensáveis para o desenvolvimento sócio-econômico-afetivo-cultural do povo brasileiro

Quando?

Quando é que a grande mídia
Vai deixar de fazer média?
Quando é que a classe média
vai deixar de fazer merda?
Quando é que a classe rica
vai deixar de ser tão pobre?
Quando é que a classe pobre
vai voltar a ser tão rica?

Onde?

De onde viemos?
Para onde estamos indo?
Onde está o nosso ouro?

Por que?

Por que produzimos tanto alimento
para alimentar o nosso alimento?
Porque nossos educandos
são educados que nem jumentos?
Porque o homem que se feriu no torno
não torna a olhar em torno?
Por que toda rima é boba?

Como?

Como é que um homem come
se como porco vive o homem?

Quem?

Quem matou Odette Roitman?

Todas

Quem vota?
Quando vota?
Como vota?
Por que volta
aonde vota?

terça-feira, dezembro 13, 2005

Os adolescentes doentes me impressionam.
Os velhos caretas me impressionam.
Fico perturbado com os carros que correm pela madrugada;
com os carros que rastejam pela manhã;
com as vidas que rastejam o dia todo.
A engrenagem que gira me incomoda e me encanta.
O óleo que lubrifica a engrenagem.
O óleo que lubrifica a moça.
Tudo isso me impressiona;
Me instiga,
me incomoda,
me encanta,
me excita,
me trucida.

As palavras do poeta me estrangulam
Quando releio meus velhos rabiscos,
cheios de riscos,
e penso por que insisto em escrevê-los
Por que não evito que se tornem velhos

Me incomoda o outdoor
A moça bonita que sorri pra mim
As luzes que me cegam e me dopam.

O hambúrguer me incomoda
Mais: me aterroriza!
Assim como o palhaço.

Ter sido o palhaço me incomoda.
A possibilidade de ainda ser,
mais ainda.

segunda-feira, setembro 12, 2005

Sede

Eu quase morro de saudades
Quando você sai pra beber água

Qualquer Merda Bem Contada é uma Crônica

A noite já é quase meia e um ônibus, como tantos outros, corre atabalhoado pelos corredores de São Paulo. Desce ligeiro pela Avenida Rebouças, levando muitos e espremidos passageiros para o sudoeste da cidade.
Em um banco bem ao fundo do coletivo, Augusto e Vera conversam animadamente, sem dar bola para a distância que os separa do lar. A menina, uma bela vestibulanda aflita com a prova que se aproxima, proseia com o namorado:

- Ai meu! Queria aprender a fazer uma crônica, é tão difícil...
- Que isso! É a coisa mais fácil do mundo!
- Como assim? Não sei... É foda! Sei escrever qualquer tipo de redação, seja descritiva, narrativa ou até mesmo dissertativa, mas uma crônica! Esses dias o professor do cursinho mandou a gente fazer uma e não fiz nada até agora. Mó foda! Me ensina a fazer uma?
- Não precisa.
- Por que? Como assim?
- Não precisa oras. Não tem o que ensinar. Você sabe fazer, qualquer um sabe. Basta contar algo cotidiano, prosaico, sei lá... Qualquer coisa que você ver na rua serve, qualquer causo, qualquer cena engraçada, enfim, qualquer merda bem contada é uma crônica.
- Ah é? Me dá um exemplo então.
- Hummm... Deixa eu pensar...Isso é uma crônica.
- Isso o que?
- Isso, oras!
- Isso o que, Augusto? Para de brincar comigo e me explica essa droga logo!
- Vera...
- Oi?
- Presta atenção...
- No que?
- Isso é uma crônica.
- O que? Nossa conversa?
- É.
- Tem certeza?
- Claro. Um casal, voltando para casa em um ônibus lotado e discutindo sobre como se faz uma crônica. Perfeito. Sem tirar nem por. Aliás, fosse eu o cronista, terminaria agora.