domingo, junho 24, 2007

A funcionária público-privada


Agora ela era chefe de uma repartição pública. E sentia-se tão privada de tudo. O nome dado ao lugar que habitaria era comprido e não revelava nada: Coordenadoria de Controle Interno para Registros Funcionais. Não constava nisso o ar puro junto à janela – não havia janelas – nem sequer o clima doce e suave propiciado pelo arranjo dos perfumes de outras funcionárias. Que outras? O espaço era todo – e só – dela. A chefe. A mulher-maravilha do funcionamento público que, na verdade, vivia privada do funcionamento. Nem havia relatos de que algo lá dentro realmente funcionava. Agora mesmo cessava o "tac-tac-tac-tac" da digitação para prestar atenção ao silêncio que fazia em volta. A princípio, sentiu uma necessidade absurda de conversar ou ver entrar pela porta uma pessoa qualquer: o vendedor de loteria, o poeta (uma poesia a um real, como se fosse um broche), a costureira, o engraxate. Mas os profissionais não saberiam chegar até lá. Nem as pessoas que haviam trabalhado lá sabiam voltar ao lugar. Ela mesma preferia não ir mais embora com medo de perder-se pelos corredores e esquecer o caminho que a havia conduzido à chefia. De repente, de pensar nisso tudo, passou a desejar o que era mudo. Quem sabe pudesse ouvir a si mesma em um silêncio profundo. E rapidamente se levantou da cadeira para desligar o ar-condicionado. Mas alguma coisa no fundo ainda ecoava intrigante e cobria a ausência de som. O estabilizador. Desligou-o. Julgou sentir-se melhor estabilizada dentro do contexto branco daquelas paredes ocas. Que sofrimento aquele de perseguir o nada – para desvendar tudo o que havia perseguido a vida inteira. Ali, agora, ninguém atrapalhava - ninguém trabalhava. E pôde ouvir, então, as pegadas de formiga, do mutirão de formigas trabalhadoras que se enfileiravam para dentro da sala, através das frestas da porta. Mas ela era a chefe e única. Tinha o direito e o dever de estar à mercê dos outros setores, coordenando aquela sala; mantendo o equilíbrio do silêncio emanado pelas paredes já mencionadas. Matou as formigas, uma a uma, procurando não fazer alarde. Elas corriam agitadas e vesgas, mas uma pisada da chefe – da imensa mulher trancafiada – cobria dezenas de formigas histéricas. E qualquer um que ousasse chamá-la de mal-amada – entro no assunto porque ouço os boatos – irá surpreender-se com a quantidade de olhos claros, escuros, neutros que observam – e anseiam por - sua chegada. O problema era alcançar um estado de silêncio tal que ela fosse capaz de entender suas próprias palavras. E tão logo matou os bichinhos, percebeu um barulhinho vindo de cima do armário – um dos três móveis escuros que cercavam sua mesa. Era o "tic tac" de um relógio requintado, lembrança do presidente de todas as repartições cabíveis naquele local, que mais se assemelhava a um porta-chá – as salas eram todas iguais. Mas se o relógio havia sido um presente fino, ela agora pretendia alcançar o mais simples - sua única pretensão. E talvez fosse mesmo desesperador a ponto de tê-la impulsionado a arremessar o sofisticado relógio contra a terceira parede – sem mencionar a hierarquia entre elas, mas sinceramente faz sentido referir-me à terceira parede. Porém o filtro de água também possuía aquele motorzinho humilde dentro de si. O que ela faria ao sentir sede dali para frente, se era verão e a água com certeza estaria quente? Recusou-se a se responder – agora que suavemente quase conseguia se ouvir. Dali para frente, ora, não sentiria sede nem fome! Porque se atingisse um nível de silêncio suficiente para se compreender, tinha certeza do que ouviria, e a satisfação de entender a si mesma era muito superior às reclamações físicas. Tirou o filtro da tomada e o resultado da anulação daquele som ela recebera sem susto. Uma constatação triste de que algo ainda precisava ser desligado. Era ela, desconectada do mundo – que mundo? Onde é mundo? - saboreando o prazer de ser amarga. Atirou-se contra todos os objetos da sala – desperdiçando-se em gestos grosseiros e pouco hábeis. Confrontar-se com a matéria – ela, que se sentia alma novamente fácil? Foi o seu dilema: romper o semi-silêncio para arrebentar tudo o que fosse emanador de som. E de repente uma roda-gigante de barulhos estridentes: grampea-dores, computa-dores, desperta-dores – dolorosamente espatifados no chão. E quando não havia mais o que tirasse a paz do local perturba-dor, sofreu guardada – ela também se atrapalhava – ao escutar no silêncio impenetrável que, ela mesma, não tinha nada a se dizer. Funcionária Pública da Locução Privada.

2 comentários:

.hi-fi. disse...

...onde consigo livro seu?

Unknown disse...

Puta que o pariu! Muito bom, muito bom mesmo!