quinta-feira, agosto 09, 2007

Sentimento Travestido


Eu trago comigo esta melancolia úmida transbordante dos lábios trêmulos. Já me chamaram de frívola. Eu não me lembro. A cada passo, mais distante me encontro, em qualquer caminho ermo, estou perdida. Sei que queres colaborar com alguma coisa em minha vida, meus "ais" noturnos que já não escutas por não morar contigo, mas basta! Somos agora duas almas desestimuladas demais para levitarem juntas – aterrissemos. Você me deixou com o peso de meio mundo ao me fazer enxergar que nunca viste em mim um futuro promissor. E desde adolescente, acostumei-me a não fazer promessas – a não cumpri-las. O que temos de mais parecido está tão-somente nos cílios compridos. Fazer exigências de que eu me torne alguém que não possuis em tua essência é, no mínimo, presunção. Sejamos realistas: o que tenho de mais feio são os joelhos e os cotovelos que herdei da mãe que você não quis me apresentar. Seremos eternos em uma outra vida. Hoje não. Estou ausente de mim mesma, rompendo o barulho com um silêncio impenetrável – nem ao menos teu olhar incisivo seria capaz de transpassar as paredes do destino que eu mudei. Gostou da cor? Está satisfeito agora que tudo é cinza como as nuvens nubladas sobre a garagem do teu carro? Eu não moro mais contigo, e não é por causa disso, já que sempre tomei banho de chuva, caminhando sem sombrinha para a escola imunda. Como odiava ter de estudar em escola pública! Como era repugnante ver aquelas criancinhas bestas, que se beliscam o tempo todo, e babam, e deixam o nariz escorrer aos olhos do mundo; crianças que comem crianças. Serei do morno túnel cuja luz está no meio – e eu vou até o fim, porque me ensinaste a amar o contrário, agora não assumes que o inverso é mais modesto. Jamais fui rebelde nos gestos, mas trinta anos depois, despejo em você a agonia de viver encerrada neste corpo que me alicia. Você me fez a sua mulherzinha. Por quanto tempo eu suportaria respirar o teu perfume? Subornei o próprio instinto, você sabe, sou sincero mas desonesto. E agora, no masculino, me sinto descabido e doce, no descompasso do tempo que a tua lembrança me trouxe. Espíritos, quantos e tantos, espíritos me seduzindo noite adentro em línguas de espanto - um horror! - noites mal sonhadas, sofrendo a ponto de me sentir a alma feminina na vazão do grito. Era apenas inspiração noturna. Mas eu lavei todos os pratos e roupas, suas cuecas e louças, estendendo os planos no varal a quinhentos metros do jardim. Estava tudo fora do lugar quando eu nasci. E eu descobri que no fundo do poço há outro mais fundo. E que se você conhecer meu namorado, meu marido, meu filho, não sei, se você conhecer alguém que realmente valha a pena em meu cotidiano insosso, ou se você se recusar, como fez até ontem à noite – e hoje eu lhe escrevo sem ter dormido uma linha sequer – na verdade não faz a menor diferença nas horas que passam dentro dos anos que levam a minha vida. Esta, que será levada de todo a qualquer minuto do dia, por descuido meu, admito, meu descuido deitado em tuas amiúdes manias. Mas se nunca quiseste, lá atrás, não vou agora obrigá-lo a falar em sexo só porque o meu foi condenado a sacrificar-se em nome de um sentimento aflorado naquela cozinha daquela casa daquele bairro onde meus pés nunca mais pisarão, e vamos esquecer aqueles quatorze anos. Recordar é reviver; e eu estou morto. Porque sou a mulher que você idealizou, fabricada em seu quintal, nas inflamadas tardes de sol, em que eu te servia a caipirinha com bastante gelo e pouco limão: eu fui a tua putinha. E, carente de sentidos humanos, me despi de sanidade. É possível que você chore agora que a minha ausência lhe ensinou o verbo apático – e a minha reaparição lhe conta a mais triste história. E eu vou sentir pena, tanta pena, de nós dois. Você gostou tanto daquele bordado que preferiu acreditar que fora feito pela vovó, mas eu escrevi: "te amo, papai -1989". No berço de um sentimento transtornado e poluído que, hoje sei, Deus não ousaria considerar amor. Abismado de me ouvir falar em Deus? Eu, que me fiz a aberração da bíblia na modernidade? Freqüentei a igreja, pai, por muitos anos até encontrar o que eu queria – fora dali. Dei-me o direito de sonhar como toda mulher, e realizar: me casei há dois anos, você não quis conhecê-lo por receio de não me reconhecer. Independentemente de quem eu sou - não sei, você algum dia soube? – eu me resumo nesta só frase: uma pessoa feliz.

Mas hoje trago comigo esta melancolia úmida, de uma doença que não cura, porém é o teu orgulho seco que me mata.

Um comentário:

Ju disse...

"Eu trago comigo esta melancolia úmida transbordante dos lábios trêmulos. Já me chamaram de frívola. Eu não me lembro" !

Falta travestir meu corpo. Não me lembro bem quando comecei a tomar forma. Só entendi quando você me despiu. Hoje arranco todos os meus cílios.