segunda-feira, agosto 27, 2007

Praga - Parte 4 de 4

Tico não conseguia parar de rir. Sua barriga e seu rosto já começavam a doer um pouco, pensava que os olhos saltariam das órbitas. Em sua mente estava até um pouco desesperado com tudo isso, mas achava graça em cada comentário que seu amigo fazia, em cada pequeno detalhe que observava pelo caminho, em cada som que ecoava mil vezes em seus ouvidos.

- Nossa, cara, você tinha razão, esse bagulho é da hora mesmo! Mas não sei se vou conseguir conversar direito não... já não to conseguindo lembrar do que a gente tava falando... olha lá o traveco, cara! De biquíni laranja, que engraçado mano! Olha que peitão, parece que vai explodir mano!
- Olha aí, já ta lesadão! Deu sorte hein, mano! – Nando disse, caindo em gargalhadas - Eu só chapei da quarta vez. Já você, olha só: já ta brisando no travecão!
- Pára mano, esse negócio é mó viajem... mó traveco comédia mano!
- Quer pegar nos peitos dele? Se quiser a gente faz a volta e...
- Que pegar nos peitos é o caralho! Qual que é, truta, ta me tirando...
- Não para de falar no traveco...
- Essa porra que você me deu que me fritou as idéia. To até com dor de cabeça, mano, não vou conseguir parar de rir nunca...
- Relaxa velho, primeira vez é assim mesmo. Depois fica mais suave, uma luz mais leve... Aí, chegamos. Bem vindo ao bar do Figura. Umas menininha, rola uma sinuca, um som da hora, breja barata... Se pans esse é o pico que mais visitei desde que você apagou.

Os dois adentraram o boteco satisfeitos. Era um ambiente simples e bastante cheio, aonde grupos de universitários conversavam alegres, levantando seus copos e brindando, barulhentos, embalados por sambas de gafieira e bossas bonitas da época de seus pais. Os dois estavam tão alegres pela presença um do outro que nem lembraram que Tico detestava samba. Fernando estava bem contente, sentia muita falta dos tempos em que os três eram inseparáveis. Velhos tempos, como as coisas mudam rápido. Como as coisas se perdem rápido. Nunca mais se reuniriam, sabia disso. Mas agora, pelo menos, tinha Tico de volta. Pelo menos Tico.

- Aí Figura, manda uma gelada e dois copinho pra cá, tem a moral?

Conversaram banalidades por um pequeno tempo, Tico sempre rindo muito de tudo. Quis saber se seu time estava bem no campeonato e ficou feliz ao ouvir que enquanto ele estava desacordado a equipe se sagrou campeã continental, embora tenha lamentado não assistir o triunfo. Perguntou quem era o presidente novo, quem ganhou a copa do mundo e se a dona Jucélia, figura centenária que dirigia com mão de ferro o pequeno colégio em que estudaram, já tinha batido as botas. Ficou espantado ao descobrir que até as torres gêmeas não existiam mais, mas a velha coroca continuava na ativa, humilhando os alunos enquanto entregava, com discrição hipócrita, os envelopes brancos que gritavam em silêncio: “Inadimplente! Inadimplente!”. Ficou espantado com muitas coisas.

- Manda mais uma aí, camarada! Mas caralho, Fê, até o George Harrison morreu! Que porra, todo mundo morre nessa merda! Quem mais morreu? Fala aí.
- Bem, cara... Pra te falar a verdade... Bem...
- Ih, qual que é Nando? Mudou a cara de repente. Falei coisa errada?
- Não cara, relaxa, já ia te contar mesmo... Bem... É que... Morreram meus pais...
- Como assim moleque, você ta me zoando? Fala sério, mano, não brinca com essas coisas!
- É verdade, porra, cê acha que eu vou brincar com isso? E o pior que meu pai tava cheio de dívida, rolou o maior aperto lá em casa, uma merda. Eu e meu irmão só não morremos de fome por causa da minha tia Cleide. Sei lá truta, já faz até um tempinho que evito tocar nesse assunto, mas tinha que te contar.
- Que merda! Você ta bem, cara? Como isso aconteceu?
- O coroa cravou o carro num poste truta, aceleradão, tava encharcado! Voltando do aniversário do Braga, um camarada dele. Meu pai morreu na hora. Lembra do Soares, o sócio dele? Tava no banco de trás. Até conseguiu chegar no hospital, mas não teve jeito, não resistiu também. Foi feio mano, arregaçou o Fiesta. Por causa dessas fitas que só to entrando agora na faculdade...
- E sua mãe?
- Ficou que nem você. Dez meses. Depois morreu também.
- Mas que porra, maluco, que merda é essa? Que mais de desgraça você vai me contar? Foi pra isso que você me trouxe aqui?
- Ih, Tico, qual é? To falando dos meus pais, porra, não dos seus! Aí Figura, desce mais uma !
_ Tem razão, Fê, foi mal aí... Mas velho, depois que acordei, só me contaram desgraça... Parece que não deu nada certo pra ninguém, sei lá Eu sou a zica, mano, ou o gatilho, vai saber... Preferia ter continuado em coma.
- Cala essa boca, moleque! Como assim? Você sempre foi o mais forte de nós, vai falhar agora? Já falei, foram os meus pais!
- Forte, velho? Como forte? Eu? Forte é você, truta, olha aí. Eu era uma mentira. A maior mentira.
- Não fala isso não, velhote...Você sempre foi o primeiro em tudo! Em tudo, Tico! O melhor, o mais bonito, o mais forte, o mais desencanado. Você sabe que eu e o Fred nos espelhávamos em você. Não vai peidar na farofa mano!
- Mentira, caralho, era a maior mentira mano... Que viajem... Se espelhar em mim, o que você ta falando? Que merda, cara... Se espelhar em mim... E o Fred, falando nisso, você falou que ia me contar aqui. Não vai me dizer que ele também...
- ...
- E o Fred, Nando?
- ...
- E o Fred, Nando, porra, o Fred! Não vai me dizer que...
- Calma, Tico, calma... O Fred... Bem...
- Fala, seu filho da puta, desembucha logo essa merda!
- O Fred também morreu.
- Vai tomar no seu cú, Nando, você ta me tirando!
- Calma, Tico, caralho, calma!. Não faz muito tempo. foi por isso que liguei na sua casa, queria contar pros seus pais e pra sua irmã, visitamos muito você no começo, nos apegamos a sua família de uma maneira estranha. Enfim, o Fred quis pegar o atalho... o caminho mais rápido, truta! Aquele babaca, quanta saliva eu não gastei com ele e o cara nem pensou um pouquinho que seja! Tava na cara que aquelas idéias dele iam dar merda, mas você lembra como ele era teimoso...
- Que idéias, Fê, fala logo.
- Quis pagar de Zé Fitinha, cansou de ser otário... Mas rodou logo na terceira fita. Foi pruma delega superlotada no Embu, depois que pegaram ele tocando a fuga de dois cara que tavam fazendo um Bradesco no centrinho. Na primeira noite teve rebelião. Bem...
- Mataram ele.
- É. Degolado.
- Fred, caralho, você sempre foi muito burro, filho da puta! Você nem precisava disso, que buceta! Que buceta!
-...
- E a Carlinha?
- É minha mulher. Estamos juntos desde aquela época.
- Pô, uma mísera notícia boa! Ela ainda tem contato com a Débora?
- A Dé morreu também.
- A Dé o que? Fecha a conta dessa merda, eu quero ir pra casa. Você ta de palhaçada comigo, isso não é brincadeira que se faça com alguém que acabou de sair do coma.
- Não é brincadeira, Tico, é verdade. Desculpa cara, mas tinha que fazer isso. É a última morte que tenho pra te contar. Foi pouco tempo depois de você apagar. Você lembra, cara, a coitadinha tinha uma vida tão complicada, os pais dela eram foda... Ela ficou desesperada, achou que você ia morrer por causa dela.... Ela... Porra... Ela...
- Vai, Nando, acaba logo com essa merda que eu não agüento mais.
- Porra mano, é que isso é foda. O Rafael... Sabe?
- Como assim “sabe”? O cara me botou no coma, caralho! Ta me tirando? Fala logo o que esse filho da puta fez!
- Ele foi atrás dela, queria ela de volta, não tava conformado com a derrota. Bem, um dia ele foi na casa dela... Os pais dela não tavam lá, ela colocou ele na garagem pra conversar, explicar que não... Ela odiava ele, coitada...
- O que ele fez, Nando, Fala! Solta logo, porra!
- Ele... Mano... Ele estuprou ela, velho. Na mesma noite ela escreveu duas cartas, uma pra mim e pra Carlinha e outra pra entregar pra você se um dia você acordasse. Encheu a banheira do banheiro do quarto, entrou, cortou os pulsos e ficou lá, ouvindo Titãs, por que você adorava. Escreveu que se matou para pagar a dívida que tinha com você e com ela mesma, por ter namorado um cara como o Rafael.
- Nossa cara, me da um cigarro, pelo amor de deus. Eu já nem to mais louco daquela porcaria, nem tinha percebido. Que porra, mano, pra que tudo isso? Pra que? Não to entendendo mais nada, acho que vou acordar suado e perceber que ainda não te encontrei... Ou sei lá, será que eu ainda to no coma?
- É foda, truta, é foda, mas é tudo verdade. Mas quer saber de uma coisa: eu to um pouco feliz.
- Feliz com o que, animal?
- Pelo menos você voltou.
- Cala a boca, Nando, vai se foder! Voltar pra essa merda toda, que grande recepção de bosta que você me fez!
- Vai se foder você, Tico, uma hora você ia ter que descobrir tudo, melhor ser de uma vez, qualé que é, to te falando na maior camaradagem...
- Droga, velho, que droga... quer saber, chama o tal do Figura aí e pede mais uma breja... ou melhor, pede uma pinga. Que porra, brother, será que foi porque a gente cabulou tanta missa? Que porra de castigo bizarro, truta, que droga!
-É... Que merda, né velho? Aí Figura, traz mais uma breja e uma dose da branca aí pra nós, tem a manha? Pô, cê ta falando esse negócio de missa... Sabe que às vezes eu penso uma coisa estranha... Você vai me achar meio bizarro, mas...
- Lança aí, Nando, bate logo.
- Não vai ficar me zoando hein...
- Vai, moleque, fala logo...
- Lembra de uma vez que a gente cabulou a missa e você foi fumar um cigarro bem no pátio?
- Lembro, cara, lembro sim. O que tem?
- Lembra que o Juvêncio nos pegou e ficou falando um monte de merda?
- Lembro.
- Então, ta aí.... Isso tudo aí foi praga, truta, mandinga das fortes. Urucubaca, zica feia! Aquele filho da puta rogou a maior praga, mano! Praga do Juvêncio. Tenho certeza, truta, praga! Praga forte! Praga daquele escroto filho da puta cornudo do Juvêncio!

5 comentários:

Anônimo disse...

Te mando um mail até Domingo. Os projetos se avolumam. Preciso de toda ajuda possível. Gostei da tua iniciativa. Um abraço.

Anônimo disse...

Deus ex máquina puro, mas faz jus ao título, e acabam se anulando. Os diálogos estão fabulosos e agora percebi aquele "Q" que faltava na narrativa daquele trabalhinho. Beijos!

.hi-fi. disse...

mto bom! viva intensamente, morra jovem. não quer escrever novelas, folhetins ou afins? hehehe

Cíntia Costa disse...

Por que a culpa é sempre da igreja??
:)
Gostei, Caito.

Diogo Lyra disse...

Êta beck porreta!