quinta-feira, março 06, 2008

Sozinho na enorme sala, tocava desolado em frente ao piano. A família falida e morta. A mulher que o abandonara. Os amigos o abandonaram. A alegria fingida quinzenalmente em frente aos filhos, a falta de ânimo de viajar para ver os pequenos. Sobrara apenas aquela velha casa, quase uma mansão comparada a periferia que a cercava, aquela velha sala, cheia de quadros estranhos, de figuras místicas, budas, um ganesh, duas shivas (uma esculpida em bronze, outra enquadrada na parede) gatos, tigres e outros artesanatos de aspecto oriental, incensários, um suporte para violão preenchido com um belo exemplar do instrumento, móveis no estilo colonial, paisagens árcades, barrocas e um quadro pós moderno que um pintor amigo de sua mãe deu de presente a família. Uma bagunça estilística, sem sombra de dúvidas, mas uma bagunça harmoniosa, se acostumara com aquela balburdia, aquela poluição visual, aquele barulho imagético que a velha sala emanava. Tocava Ave Maria, adorava Schubert. Era agnóstico, mas aquela melodia o envenenava, o enchia de graça, sabia do poder entorpecente da música.

Adorava o poder entorpecente das coisas. Passava agora seus dias chapado de tudo o que podia ou tinha na hora. Bebia, fumava, cheirava, ingeria balas e doces, pegava o carro e saía sozinho de sua casa no sul da cidade rumando o interior, toda vez que chovia muito em um dia e no dia seguinte fazia sol. Ia colher cogumelos. Tomava poucos banhos, mas também não fedia muito, o que era impressionante levando em consideração a quantidade de toxinas que colocava para dentro de si. Alimentava-se de congelados fritos no geral. Nuggets, hambúrgueres, quibes e outras iguarias. Abandonado pelos amigos, pela mulher, pela vida, pela morte, colecionava pequenas enfermidades, nada grave o suficiente para livrá-lo do fardo da existência. Fumava um cigarro atrás do outro, intercalado com baseados gigantes, com sorte recheados com haxixe, torrando a pequena quantia que adquiriu vendendo as máquinas da empresa do pai, depois enchia a pança de bobagens e coca-cola e saia sozinho, observando as pessoas, criando em sua cabeça melodias tristes de nomes esdrúxulos. Sinfonia do Raimundo Cansado. Sonata da Mal-Comida. Concerto nº33 para o Zé Povinho. Voltava para casa e anotava tudo em suas partituras envelhecidas, amarelas, anacrônicas. Comprara centenas delas, anos atrás, quando Marília o abandonou. Tinha horror ao computador. Não se importava com as dívidas, esperava feliz, fritando na mesa do bar, que tudo caducasse. “Um dia a dívida prescreve”, pensava prático.

Às vezes ouvia rock. Outras vezes ouvia samba. Sempre intercalava com os clássicos. Dormia pouco, mas quando dormia, ouvia Chopin. Sabia que era clichê, mas o que podia fazer? Funcionava. Nas inúmeras noites que não dormia, compunha em quantidades torrenciais, e suas composições eram explosivas. Seu piano era inconstante, por vezes nervoso, por vezes alegre, outras triste, outras pesado, outras sexy, era um piano bi, tri, tetra, multipolar, como ele era. Com muito esforço e ajuda de um pessoal amigo do meio, conseguiu lançar um CD, mas é claro que a crítica odiou e o resto do universo ignorou. Sua música era explosiva, mas não o suficiente. Resolveu fazer explosivos de verdade.

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Pensou em explodir diversos lugares, o palácio do governo, a Daslu, o Terraço Itália, o hotel Fasano, o Centro Empresarial, mas não conseguia passar das pequenas detonações de teste no seu quintal. Tinha medo, muito medo. Era fraco. Muito fraco. Tinha rancor, é verdade, mas não queria machucar pessoas. Ainda assim, precisava fazer algo.

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No dia em que o jovem músico se desmanchava em chamas e gritos de dor na Praça da República, dona Regina levava sua neta para passear. A pequena nascera na metrópole, mas foi muito cedo para o interior com sua mãe e seu irmão mais novo. Deixaram na cidade o pai, músico problemático, “tão idealista quanto vagabundo”, de acordo com as ainda incompreensíveis palavras da mãe. Estavam muito próximas quando o homem banhado em gasolina ascendeu o pano que surgia de dentro da garrafa de coquetel molotov e jogou para cima, em uma vertical perfeita, deixando-a cair sobre a própria cabeça, produzindo um belo e melancólico espetáculo pirotécnico. A pequena Sofia olhou assustada para a cena e, vendo um pequeno piano de brinquedo ao lado do homem, perigosamente próximo ao fogo, a madeira suando devido ao calor, pensou que o sujeito podia ser o pai dela. Questionada, sua avó descartou rapidamente a hipótese, mas agarrou o terço com força e desespero com a mão esquerda enquanto a mão direita, liberta da mão da neta, procurava afoita o celular na bolsa antiquada. Sofia chorava que soluçava, porém extremamente contida, revelando sua extrema educação até nos momentos de pânico. E a avó, após discar finalmente o número certo, o celular tremendo encostado na cabeça, pensava: “Atende, Marília, atende logo essa droga...”.

2 comentários:

Luis Eustáquio Soares disse...

belo texto, parceiro, de convergências divergentes, como é o que nos ocorre, acasos concorrentes de des-tinos divergentes,incomunicáveis, num mundo em que a comunicação nos faz calar, ou no qual comunicamos pra fazer calar.
meu abraço e te convido a outra leitura.

.hi-fi. disse...

implosão!