sexta-feira, abril 18, 2008

(Sem Título) cap 4 Juliana

A roda era grande, cerca de seis meninos e quatro meninas. Juliana sentia-se meio desconfortável, lembrou de uma vez que todo mundo brincou de "verdade ou desafio" na sua antiga rua, eram mais crianças, é verdade, mas deu merda, sempre dá merda. Ainda assim resolveu continuar lá, e a caneta continuava girando no centro da roda. A esfera tinteira indicava a vítima, a parte traseira da caneta, o inquisidor. Sabia que alguma hora chegaria a sua vez. Foi agraciada com o direito da pergunta por duas vezes, e, posta frente a frente com duas "verdades", fez perguntas inocentes e descompromissadas, sem nenhuma intenção de constranger o interlocutor. Enquanto sua vez de ser a vítima não chegava, ficava observando o comportamento das pessoas, no geral fazendo perguntas sexuais ou desafios mais constrangedores do que engraçados - ao menos pras vítimas - vendo quem seria o pior perguntador, quem seria o melhor... Torcia pelo Anselmo, menino doce e tímido por quem nutria um belo amor juvenil, mas achava que o rapaz nem reparava nela. Mas se fosse o Marquinhos ou o Cardume, puta merda, estaria fodida. Ainda mais agora que o delicioso galão de vinho Chapinha já estava abaixo da metade. Marquinhos era o menino bonito da roda. O espertinho, catador, garanhão, repetente, dois anos mais velho, já tinha barba e não era tão pouca! Vivia zoando os outros moleques, era daqueles que andava na frente da turma, carregando consigo meia-dúzia de moleques de baixa auto-estima, como o Cardume. Esse último, coitado, era meio lerdinho, ganhou o apelido na sala de aula ao confessar para a professora que não sabia o significado da palavra cardume. Apesar disso, era extremamente malicioso. O idiota, da última vez que teve a chance de perguntar "verdade ou desafio?", recebeu:

- Desafio.
- Vai ter que dar um beijo no Marquinho então.

A vítima era a Regininha, a mais gostosinha dentre as meninas, a precoce (as meninas maldosas diziam que era apenas meio gordinha), consciente da sua posição na pirâmide social ginasial, esperta, adiantada, até por isso um pouco arrogante. Apesar disso o Marquinhos nunca havia chegado nela. Ficou eufórica. Era sua vez! Olhou para Tânia, que mordia os lábios de inveja.

- Como assim? Não acho certo esse desafio. Não pode ter nada envolvendo outra pessoa.

Sempre é bom fazer um charme.

- Tudo bem, vamos perguntar pra ele. E aí Marquinhos, como é que é? É pegar ou largar.
- Por mim, tudo bem.

O coração de Regininha bateu mais forte, sua face corou visivelmente.

- Tá bom, vai. Mas eu ainda vou cair com a bunda dessa merda dessa caneta pro meu lado. Vamos logo com isso.

Fez cara de brava, bufou e foi em direção ao Marquinhos. Passou sua mão direita pelo pescoço do menino e o puxou para um beijo curto e intenso. Foi curto, realmente curto, mas fez o possível para dar o melhor beijo, se lembrou de todas as regrinhas da Capricho, mordiscou o lábio no final, deu uma puxada leve no cabelo em cima da nuca, passou o seu all-star por cima do all-star dele, será que acertou mesmo todas as regras?

Juliana observava tudo inquieta, tentando parecer tranqüila, fazendo piadinhas nervosas de vez em quando. Estava ansiosa, queria que aquilo acabasse logo. Internamente reprovou a atitude de sua amiga, como ela pôde fazer uma coisa dessas? Abrira um precedente terrível, agora se ela fosse sorteada não poderia escolher "desafio", não queria beijar ninguém naquela hora, estava triste, chateada, decepcionada com o imbecil do Suave, rapaz cinco anos mais velho que tirou sua virgindade há três semanas. Como ela foi burra, tudo tão clichê, ela não era uma menina esperta, com pais diferentes, que lia, via filmes, pensava, como não percebeu? Todo aquele papinho doce, aquela carinha de rapaz mais velho, barba, pelo no peito, voz grossa, já trabalhava até, tão maduro, tão inteligente, sentia-se privilegiada por ser escolhida por ele, sentia que estava à frente de sua idade. Agora se sentia jogada fora. Comeu e jogou fora. Ou melhor, comeu, comeu, comeu, comeu e jogou fora. Já não conseguia mais prestar atenção no jogo, pensava no que seus pais diriam se descobrissem, sim, eram diferentes, mas não sabia se eles seriam tão legais assim quanto a isso. Pensava que a essa hora, pelo que a Julinha contou, o Suave estaria tirando a virgindade da Cicinha, aquela gordinha da rua de baixo.

- Jú, sai dessa, esse moleque é o maior filho da puta! O Régis disse que ele é o maior cuzão, gosta de menina virgem, depois que ele transa com você algumas vezes, já era. Isso se não for uma vez só.
- Como vocês são, nem conhecem o menino! Ele é muito legal, você devia conversar com ele um dia. Além disso, ele me contou que só transou com três meninas até hoje, quatro comigo.
- E você acreditou?
- Claro, o que dizem é estória, todo mundo tem inveja dele.

Como ela foi burra! Agora estava ali, no meio daquela molecada que nem era tão amiga dela assim, bebendo aquele vinho horroroso, fumando um cigarro atrás do outro, ansiosa, meio puta da vida, cada vez mais confusa, cada vez mais triste, cada vez mais bêbada.

- Hummm... Vejam só pra quem a caneta apontou.finalmente! Fala Juliana, verdade ou desafio?

Quem perguntava, para sua alegria, era Regininha. Não eram as melhores amigas do mundo, mas até que se davam, já tinham conversado algumas vezes, dormiram juntas na casa da Marcinha, trocaram meia dúzia de confidências pueris. Não parecia oferecer nenhum perigo. Bem, por via das dúvidas...

- Verdade.

Verdade. Ah, maldita verdade! Será que ela existe mesmo em algum lugar? Em alguma cabeça, em alguma existência, em algum fenômeno, em si mesma? Como estava bêbada... Seria a verdade verde? Ou seria a verdade vinho? Queria mesmo falar a verdade? Iria mesmo falar a verdade? Que isso, devia deixar de preocupação, era só a Regininha...

- Verdade, hein? Hummm, vamos ver... Deixe-me pensar em algo bem legal... Juliana... err... Você por acaso... bem...já se.. masturbou alguma vez?

O que? Era isso mesmo que ela estava ouvindo? Como assim? Filha da puta, qual era a dessa menina? Qual o motivo dessa pergunta? Poderia mentir, pensou, mas teve medo. Sua inquiridora sabia a resposta. "Foi de propósito, com certeza. Se eu mentir, ela vai me denunciar. Vagabunda falsa do inferno".

- Qual é Regininha, que pergunta é essa?
- O jogo é assim - interveio Cardume - vai ter que responder.
- É, vai ter que responder.
- Não pode fugir.
- A regra é essa, vamo lá!

Juliana baixou os olhos, confusa. O que deveria fazer. A cabeça girando mais e mais, será que era uma piração, por que logo ela, por quê?

Os meninos ficaram agitadíssimos, ansiavam pela resposta nervosos, roendo as unhas, balançando os pés, pareciam a torcida esperando pelo pênalti que define o campeonato. Gritavam, faziam piadas, pressionavam, riam, cochichavam, gritavam mais. Tudo isso foi deixando Juliana cada vez mais confusa, todas aquelas pessoas que ela conhecera há pouco, todas aquelas idéias girando na sua cabeça, o vinho, o Suave, papai, mamâe, o Anselmo, as matérias da Capricho, os livros, a professora de religião, as meninas da rua, o diretor da escola, a voz mudando, os seios crescendo, o mamilo é assim mesmo?, que porra de estria é essa que apareceu na bunda?, a cólica, o sangue, o ginecologista, o macaco ginecológico, as revistas da gaveta do papai, o vibrador da gaveta da mamãe, aquele livro sobre feminismo para adolescentes, a Cristiane F., o Rimbaud, as bonecas na casa da Barbie, a brincadeira de corda no quintal, o filho da puta do Suave!, tudo girando, girando, girando, verdade, diziam, verdade, verdade, a verdade, verdade velha, viúva, vasta, verdade vulva, maldita verdade, não é desafio, é verdade, a verdade (!), qual era mesmo a pergunta?

- Como vocês são babacas. Quer saber: já me masturbei sim, cambada de moleque imbecil. Aposto que vocês passam pelos menos uma hora por dia trancados no banheiro de casa batendo punheta. Bando de idiota do caralho! Punheteiros de merda.
- Calma Jú! Relaxa, o jogo é assim mesmo, já respondeu, já foi - disse Camila, tentando consolar a amiga- Vamos rodar a caneta logo de uma vez.
- Roda a caneta aí, siririca! debochou Cardume.
- Cala a boca, idiota!
- Hum, tá nervosinha nega? Melhor bater uma siririquinha pra se acalmar!
- Pára com isso, Cardume!
- Qual que é? Menina idiota, não sabe brincar. Fica aí dando chilique. Se cair comigo, vou perguntar se foi com a mão ou com o chuveirinho.

Juliana andou calmamente, embora trançando as pernas, até ficar cara a cara com Cardume. Era bonita, Cardume percebeu aquela beleza prestes a emergir, sentiu-se um pouco envergonhado, olhou-a pela camiseta branca do colégio, até que já tinha uns peitinhos bonitos, porra (!), ela já tava até tocando uma, por que não poderia ser dele?

- Desculpa aí, Jú, eu tava só brincando. Eu exagerei, tudo bem, mas ta tranqüilo. Cê ta ligada que é todo mundo amigo aqui, não tem erro, foi só zoeira. O que eu faço pra você me perdoar?

Juliana quase explodiu de tanta raiva. Que papo era esse agora? Ele não tava querendo a verdade? Não era a verdade? Então daria a verdade aquele filho da puta dos infernos! Verdade vinho.

- Não quer saber mais não, idiota? Pois eu te digo: foi com o chuveirinho porque com a mão só lembra homem, que eu vou te falar, é tudo uma merda, como diria minha tia, só serve pra assinar o cheque.





Falou com tanta convicção, mas tanta convicção, que até ela mesma acreditou que já tinha transado com mais de um sujeito. Ditas as palavras de forma imponente, porém um pouco embargada, acertou um belo murro na cara de Cardume, virou as costas e saiu andando em direção a porta do apartamento. Cardume fez menção de reagir, xingou a menina de todos os nomes feios conhecidos e inventou alguns, mas todos os meninos, inclusive o Marquinhos, foram pra cima dele a fim de amansá-lo. Todos, menos o Anselmo, que seguiu Juliana até o hall do elevador.

- Ei Jú, deixa que eu te levo até a sua casa.

Juliana fez que sim com a cabeça. Esperaram o elevador em um silêncio cinza, doído. Desceram treze andares de cabeça baixa (mas o número do andar era 14), Juliana agitada, tremendo, com vontade de andar de um lado para o outro, Anselmo envergonhado pelos amigos. Saíram do prédio e seguiram pelas ruas cinzas de Santo Amaro. Era madrugada, certamente não a melhor hora para sair andando pelas imediações do Largo Treze, as ruas vazias agora só tinham seu silêncio cinza quebrado por eventuais brigas de garotos de rua, engraxates, vendedores de farol ou pedintes, todos de rostos cinza de poluição, de mendigos carregando bêbados e convictos seus carrinhos de papel, o cachorro fiel sempre ao lado, pelos freqüentadores também bêbados que saem dos puteiros fazendo escândalo, contando aos amigos suas peripécias com as não tão belas damas dos meretrícios do entorno, todos cinza, são todos cinza, quando debaixo dos holofotes baratos da periferia ficam cinza amarelado. Em meio aquela paisagem árida de tão cinza, aquele ar que até mesmo na madrugada era meio carregado da fumaça do dia, aqueles prédios feios, muitos decrépitos, a sujeira da rua, os portões cinza das lojas populares cerrados debaixo de suas fachadas (o pai da garota dizia que, 40 anos atrás, aquilo tudo era quase só mato, poderia ser verdade?), quando chegou a porta de sua casa, Juliana respirou fundo, olhou bem para Anselmo, e percebeu que, mesmo naquele lugar, mesmo debaixo daqueles holofotes amarelos, ele não era tão cinza, não era tão amarelo. Parecia até bem colorido. Soltou um riso meio frouxo para seu acompanhante.

- Não liga pra eles não, Jú. São uns idiotas, não sabem o que falam. Principalmente o Cardume, é o maior merdão, por isso que não pega ninguém!

Juliana soltou mais um riso frouxo por cima das lágrimas que tentava engolir. Mas o riso foi a armadilha e ela acabou caindo em um choro soluçante, convulsivo, incontrolável.

4 comentários:

.hi-fi. disse...

mto bom! melhor a cada episódio!

Bianca Feijó disse...

Nossa, que historia gostosa de se ler...

Quero parte II...rsrsrs

B.E.I.J.O.S

Aline Gallina disse...

Bem coloquial, juvenil, gostoso de ler. Essa nova geração deixa tudo muito real... mas eu gosto!

Sobre o convite: Que honra! Mas com meus dias entupidos, temo que não terei tempo para todo o comprometimento que percebo no blog. Mesmo assim agradeço.

Beijo.

Bianca Feijó disse...

Oi Caito!

Passei novamente pelo seu texto para convidá-lo a participar da enquete que tem em meu blog...

B.E.I.J.O.S