quarta-feira, abril 11, 2007

Confins sem fim

Se ela soubesse em que madeira pisar...Mas estava em ardósia. Calçava sapatos dois números maiores que seus pés planos queriam. Seu tio a chamou para conversar, mas Rosana escutou. Desconfiada do olhar pícaro que fez a esposa deste que lhe chamou, ela fingiu que continuava arrumando sua bicicleta. O tio sempre lhe dava doces e isso sempre lhe causava cáries. Menina sem mãe, tinha pai ausente e irmão desaparecido pelo mundo metropolitano. Devia estar em alguma esquina com alguma placa na mão ou um mini-rodo e água com detergente. Titio tinha bigode mal-feito e sua Rosana pelancas morenas que suavam o vestido de algodão vermelho. Tia dela arrumava o cabelo que lhe caia na cara, castanhos fios rebeldes que não se mantinham dentro do elástico de meia-calça velha. Ela lava a roupa numa bacia azul bebê enquanto a menina arruma a bicicleta que não tem pneus. Faz isso porque não sabe o que é esperança, mas tem em excesso.
O tio foi para a cozinha e derrubou café preto preto na xícara suja. Suas mãos têm cinzas, sujeiras e carrapatos. Ele a chama outra vez para lhe dar uma bala. Foi o doce mais gostoso que ela já comeu em todos seus 13 anos. Sente uma dor no último dente da arcada superior esquerda. Tudo vale a pena, até que a bala acaba. Seu tio continua ali na sua frente, Rosana arrumando o cabelo e suando sobre a bacia, seu irmão na esquina.
Santos é como chamam a seu tio. Ele limpa sapatos, corta madeira e vende produtos variados. De seu mercadinho vêm as balas para ela. Rosana é irmã de sua falecida mãe. Perdeu a esterilidade quando foi violada. Junto também se foi sua capacidade de amar. Tinha 17 anos quando isso ocorreu e logo depois conhece Santos, que a acolheu na saída de um pronto-socorro público. Eles não se falam, a menos que tenham que reclamar algo.
- Cadê o café? – pergunta freqüente do tio, geralmente sem resposta.
- Preciso de sabonete prá ropa – diz Rosana uma vez por mês para realizar o serviço que lhe rende uma grana correspondente a 1/3 de um salário mínimo.
Já a menina nunca diz nada, somente aceita as balas, dorme e acorda. Um dia, ganhou um pirulito. "Bala grande", pensou. Curtiu cada lambida sob o olhar atento do tio. Sentada no chão, pernas cruzadas, tranças cor de palha seca desarrumadas. Ela chupa o doce e pela primeira vez o açúcar em sua língua produz um doce inigualável: repara num menino que joga futebol na rua. Ele não a vê. Santos rói a unha. Ela lambe com mais gosto. O tio percebe que o olhar dela caiu sobre alguém. Dói-lhe o peito, dói-lhe o ventre.
Três dias depois vê o rapaz em seu mercado. Pergunta-lhe o nome e a idade com um sorriso que lhe sobe o bigode. O menino diz tudo. Silvio, 14 anos, órfão. Vive com seu irmão mais velho, Juliano, que trabalha de metalúrgico para sustentar os dois. Quando está no meio de sua história sobre como perderam os pais e mudaram para aquele bairro, Santos lhe entrega um pirulito.
- Bem vindo ao bairro, guri.
Silvio sai feliz da vida chutando a bola pro alto. O tio volta para o quintal e percebe que ela não viu nada. Melhor assim.

Um comentário:

.hi-fi. disse...

...o caos se torna físico, nos confins de cada micro-cosmo contido em cada pessoa