quarta-feira, julho 23, 2008

Ódio, Rancor e Outras Mágoas - 3 Desalmado

- Corre, maluco, corre!
- Que guéla , De Menor, puta que o pariu!
- Vai Chulé, caralho! Vaza daqui, a casa caiu!

A casa caiu. O cagueta era próximo, com certeza. Saiu do “túnel” - uma espécie de cova comprida e apertada, com mais ou menos 2 metros de profundidade, que começa a uns 20 metros da boca e segue o córrego até o outro lado da favela - e logo deu de cara com os gambés.

- Aí Chulé! Que beleza… Foi sorteado, cara! Vai tirar umas férias…

De Hortolândia, foi para Araraquara, de onde só poderia sair depois de três anos e meio.

- É, mina. Peguei um doze. Logo agora! Já tinha comprado a goma da coroa, só faltava a nossa…
- É. Só faltava a nossa…
- Aí mina, segura essa aí, logo, logo, eu to vazando dessa porra. Vamo fazê essa pelo pivete.

Não segurou. Também, nunca gostou muito do pivete. Resolveu doar a criança. Em poucos meses, Chulé recebeu o aviso da audiência.

- Porra, seu Juiz, essa mina tá loca!
- Porra? Você disse porra?
- Perdão, meritrísimo.
- É Meritíssimo!
- Isso mesmo… perdão… é que, seu juiz… essa mina quer dá meu pivete pra outras pessoa que a gente nem conhece cuidar? Qualé que é a dela? Aí, te digo de coração mano…
- Perdão?
- Digo… meri… tri..tí…ssimo… bota o pivete na mão da minha mãe aí, que ela é de responsa. Quando eu sair daqui, só vô andar do lado certo que é pra nunca mais faltar com o pivete.
- É mesmo?

Começou a chorar.

- Eu sempre achei que bandido não chora, seu juiz, e olha eu aqui! Se os caras do movimento me vê agora eu tomo um tiro nas idéia pra larga de ser bicha! Não tira o pivete de mim não, seu juiz… se ela não quer mais ele, deixa ele com nóis. Por favor!

O juiz não teve coragem de tirar o pivete de Chulé e o menino foi morar com Dona Zuleide. Chulé trabalhava o máximo que era permitido para poder reduzir sua pena, não parava de pensar na hora de ver o menino. Luis. Luis Eduardo Silveira. Lucho, que nem aquele argentino louco que tinha a conexão do melhor bagulho. Seu melhor amigo, por cinco meses. Não sabia uma palavra de castelhano e tão pouco o argentino era eficiente no português. Pra piorar, cada um carregava a fala com toneladas de gírias e corruptelas típicas de seus respectivos subúrbios natais. Ainda assim, se entendiam com perfeição. Queimaram muitos baseados, tomaram chá de cogumelo, muita farinha, mulher, docinho, cerveja e idéias na mesa do bar. Argentino estranho, trocava uma idéia diferente. Vez ou outra recitava até poesia.

- “Acciones negras descubiertas de repente como hielos, desordem vasto, oceánico, para mi que entro cantando como una espada entre indefesos”.

Chulé retrucava:

- Que papo de boneca… qualé que é, vai passar batom agora também?

Foram irmãos.

- Mira, como estás colgado!
- Que porra! Cagado é o cacete, Lucho, eu to é muito loco!
- Sí, loco, muy loco!

Lucho morreu. Luis, Luisinho, argentino loco!, Lucho. Três tiros nas costas. Jogava sinuca feliz no bar do Salada. Carlinha, sua namorada, viu tudo e chorou compulsivamente e sujou sua blusinha branca com sangue e pólvora e vísceras e arrependimentos. Nunca mais Chulé encontrou conexão de um bagulho tão bom (as vendas até caíram). Nunca mais chá de cogumelo no sítio,

- Lucho, Lucho, como é que fala mesmo, é “colgado”? Estoy colgado! Puerra, estoy muy colgado, amigo! Muy colgado!

nunca mais baseado, cerveja, mulher, farinha, docinho, idéias estranhas, nunca mais. Lucho Morreu. Assassinado. Lucho morreu. Atropelado. Saiu com a dona Zuleide pra comprar abobrinha e lingüiça, passou uma Ranger preta por cima dos dois. A dona Cleide, dona da venda do outro lado da rua, andou dizendo por aí que foi o Felipinho, um agroboy da região, mas preferiu não falar nada quando o Inspetor Gilberto lhe interrogou.

Chulé quase quebrou todos os dentes do carcereiro.

- Como assim meu pivete morreu? Minha coroa também? Cê ta me tirando? É mentira, caralho, é mentira!

Chegou o dia. Acabou a pena. Começou a pena.

- “Todo vale la pena se la alma no es pequeña”.
- Cala a boca, Lucho, ce já subiu mano! Que papo de boneca, porra! Você morreu. Lucho morreu, Lucho morreu! Todos! Sem coroa, sem pivete, sem truta forte. Será que vale a pena, Lucho? Vale porra nenhuma! Minha alma já foi vendida, truta. Já era.

Um comentário:

Robson Assis disse...

Lindas histórias com finais tristes!

Estou com residência (blog) definitiva agora.

Precisamos nos falar.
Abraço