sexta-feira, julho 25, 2008

Separação de bens

Tinha uma pedra no meio do caminho. Ela, que não é mulher de deixar lhe atravancarem a vida, chutou longe a pedra. Do lado de lá da margem, a pedra gritou:
-Mas como? Rápido assim?
-Sim, rápido assim. Ou é necessária uma cerimônia de adeus pra que se chute uma pedra?
Um passo à frente e a pedra grita:
-Tu ainda me amas. Não me venhas dizer que tudo se dissipa num segundo. E...e tudo o que aconteceu?
Um olhar. Um passo à frente.
-Esse ódio que tu por mim alimentas não é ódio, mas amor. Tu me ligas no meio da tarde para me xingar porque ainda me amas, mas já não podes ligar pra dizê-lo. Tu ainda me amas!
Um suspiro de impaciência. Um passo à frente.
-Minha presença realmente te incomoda? E por que te incomoda? Tens medo de voltar pros meus braços: eis todo o teu incômodo. Te molesta eu te trazer vinho e queijo? Te molesta porque queres compartilhá-los comigo: o vinho, o queijo e o torpor de depois, para adormeceres sobre o meu peito! Como pensas que pode seguir assim, ferida e caminhando?
Um nó na garganta. Um passo à frente.
-Que te dizem minhas outras mulheres? Quem pensam que são para de qualquer modo te atingirem, te tirarem o humor do dia? Logo a ti, que eu amei mais do que a qualquer outro ente, qualquer coisa dotada de existência em todo o mundo? Vou eu mesmo resolver isso, acabar com estes disparates.
Uma gargalhada profunda, demorada, confusa. Não mais um passo.
-Sim, rápido assim. Rápido, o contrário de lento, que foi como passaram as noites (amaldiçoadamente seguidas de manhãs e tardes que passavam com a mesma velocidade) em que te esperei. Rápido que nem um raio, um instante de loucura no qual se mata a própria mãe. Rápido como as nossas fodas; como a sua mente é rápida em inventar e sustentar mentiras. Rápido como você esquece as coisas que diz e faz. Rápido assim: um estalar de dedos. As feridas são minhas e a mim e aos meus cabe curá-las. A você já coube a confecção delas, uma por uma, como um ourives, meticulosamente cravando-as em mim. Eu sigo carregando todas, porque são minhas e não suas. Carrego também tudo o que me pertence, tudo o que você ainda não me tirou. Sua presença me incomoda porque me faz lembrar que fui de fato (quanta ingenuidade!!!) sua, e isso me envergonha, me fere o orgulho de mulher ter estado tanto tempo dentro dos teus olhos. E se você traz vinho e queijo, eu como e bebo. Mas pode estar certo de que o torpor vai ser sentido em braços distintos. Quanto a ele, que também é meu, não se preocupe: está sendo muito bem gasto. Todos os “não” ditos em sua consideração estão sendo revertidos em generosos “sim”. Não falta com quem queimar o vinho no meu sangue. Você, agora, é a mais remota das opções. E quanto as minhas querelas, elas tampouco te pertencem. Eu me debato com quem quiser, porque se você diz me conhecer deve saber que eu sou conflito em forma pura. Sou feita de embate. E por último, o seu amor você pode levar. Não faço questão porque isso não é meu.
Segue mancando, a perna esquerda e metade do peito em carne morta.

Um comentário:

Zéninguém disse...

c ta dando pra escritora hein moça...que que é isso!? brutal, ácido e genial...saudades, bjo.